VANDA ABRE-LHE AS FOTOS- Perce Polegatto

     

    Vanda abre-lhe as fotos. Lá está ela, a pequena Vanda, a distância – que assim também nos referimos ao tempo: como espaço. A linda criança. Sorte de ser bela. Ser assim, simplesmente. A mãe, uma mulher bonita também. Uma companheira de meu tempo. Vanda, uma presença única, em uma certa época. Como eu, presa ao nascimento e à morte. Parque, cão, balanço. Casa no interior, festa,    praia. Uniforme escolar, primeira comunhão, classe do colegial. Essa massa consistente, de formas ditas femininas, esse agrupamento celular singularmente estruturado parece firmar-se sobre o sofá,  sobre o tempo, como se não estivesse ela toda, desde já, destinada às conhecidas e ásperas provas da decomposição. Pior ainda quando se tem as fotos. Prova do que alguém foi um dia. 
    Suas ancestrais, cada uma delas jovem e viva, todas com sua idade, fantasmas de álbuns fotográficos.
Depois de existir, fica-se. Como uma pegada. 
    “Aqui eu tinha cinco anos.”
    Uma pegada? Não, não. A maior parte de nós desapareceu. Uma parte absurdamente grande. Sem nenhum vestígio. Quase tudo que acontece no mundo será esquecido para sempre.
    Não ouso tocar a foto. Preciso manter minha distância. Minhas pegadas? Meus fantasmas? Esse, à esquerda, sou eu. Somos sempre os primeiros nos retratos coletivos. Procuro-me em primeiro lugar, reconheço-me. Por que este arrepio ao encontrar-me? Minha imagem faz sentido junto aos outros da família. Fora disso, o que é?
    “Uma prima.”
    Quinze anos. Violentada pelo cunhado. Perdera o filho de um mês. Sombras de família. Segredos, escândalos. Fotografada no pomar, sorri em meio às laranjas. Saudável, cativante, pernas e pés à    mostra, convidando a um ato brutal de volúpia. O sorriso, o pomar de laranjeiras. O que busca a natureza afinal? Momentos de violento desejo gerando criaturas frágeis e delicadas como os recém-nascidos não parecem participar da mesma sucessão de fenômenos. A mesma imagem ainda me desafia. A jovem olha-me de frente. Sorri. Em meio às laranjas.
Do romance “Os últimos dias de agosto”




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