MINHA JANGADA VAI SAIR PRO MAR... - Perce Polegatto

 

Minha jangada vai sair pro mar... – ensinava Dona Dorinha, regendo-nos com um lápis. Com toda a voz de meus onze anos, entre os de minha classe e mesma formação, eu repetia as canções bonitas que nos mostrava essa mestra, enquanto acompanhava no perfil da colega, na fileira ao lado, o movimento de seus lábios, um ligeiro oscilar dos cabelos, podendo distinguir, das outras, sua voz apenas – ela que vinha se tornando o centro de meus dias, minha amada secreta de olhos verdes como o mar, de quem eu gostava tanto e tanto.
Lá fora, os furtivos remoinhos erguiam nuvens de poeira e ciscos, na estação dos ventos.
O movimento de saída encontrava-me ainda afeito à minha memória de música, os versos se repetindo enquanto eu observava, como sempre gostei, a tarde rosada sob os efeitos de certas formações de cirros, um tempo em que todas as jangadas aspiravam ao mar, e nossas vidas dispunham-se ao futuro, quando eu já considerava meus colegas com o silêncio que eles não conheciam. Meus companheiros também vão voltar, minha memória entoava. A tarde nos desfazia em incertos matizes, e o vento desarranjava os cabelos de minha amada, eu vendo agora ir-se de mim aquela de olhos como o mar, de quem eu gostava tanto e tanto.
Entre os adultos de minha rotina, tarde em meus dias de homem, aconteceu-me conhecer um sobrinho de nossa antiga professora, de quem pedi notícias com ingênua curiosidade.
“Tia Dorinha?”, ele quase sorriu. “Faleceu, já faz bem um tempo. Mas contava idade, e tudo se passou serenamente. Em sua própria cama, sem dor nem doença. O que chamam, com razão, uma boa morte.”
Eu acreditava que ela houvesse saído da vida em uma tarde rosada como as nossas, de remoinhos de vento e memória de canções. Recordava meus colegas, hoje com a minha idade e dispersos sobre o mundo. Meus companheiros também vão voltar, Dona Dorinha. Também aquela de olhos feitos ao mar, que era minha amada secreta. De quem eu gostava tanto e tanto.
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Da coletânea “Lisette Maris em seu endereço de inverno”

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Texto de Perce Polegatto, em destaque, na página 15 da 56a. Revista Ponto & Vírgula (julho/agosto/setembro/2021)
Editora: Irene Coimbra

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