PERIFERIA- Ângela Márcia de Souza

   
 
Kushim, morava às margens. Periferia mesmo. Lugar de gente sofrida onde crescera e tivera seus três filhos. Na grande São Paulo, todos ali eram pobres, cheios de sonhos e traumas causados pela falta de perspectiva. Jorge, Pedro e Luiz viviam na rua e quase sempre largados da escola sem muito acompanhamento. 
    Brincavam, corriam da polícia e amedrontavam os mais novos, com suas roupas rasgadas, de gente de periferia. Sua mãe ficava em casa com toda lida doméstica. Ganhava uns trocados passando 
roupas para a vizinhança. Tecia alguns vestidos e gritava sempre com os três.
    Certo dia, Kushim pegou no sono por mais de meio dia, enquanto os meninos brincavam próximo à sua casa. Pedro, que era o menor, tinha braços e pernas magras e os dentes ainda em fase de troca. Sempre gostava de se esconder para que os irmãos pudessem procurá-lo. Mas, nesse dia de sono profundo de Kushim, a brincadeira deu lugar ao desespero. No fundo do terreno onde moravam, passava um ribeirão. Nada de cerca ou qualquer outro tipo de limitação de acesso. Certa hora da tarde era mais perigoso. A correnteza e as árvores ali plantadas, pareciam balançar suas folhas apontando alguma direção. Todos procuraram por Pedro e, no fundo, Kushim não tinha a menor ideia do que teria acontecido. O homem, com quem fora casada, também fora chamado para ajudar na procura. Era homem bom, verdadeiro, mas o casamento tivera seu fim com a chegada do caçula.
O que sucedera a Kushim, antes de ter adormecido e seu lar já não ser tão feliz e se tornado agora um lugar de pesadelo? 
    Uma perturbada exaltação lhe veio ao peito. Pedro já estava desaparecido há mais de cinco horas. A noite se aproximava e todas as pessoas daquela periferia continuavam a procura. Kushim então pediu a Deus: “Me dê coragem, faça valer minhas orações, mostre-nos um sinal e nos deixe encontrá-lo. Vou enfrentar os próximos dias com mais alegria e gratidão caso ele apareça. Vou deixar as lamentações de lado e erguer a cabeça. Vou fazer da minha solidão o propósito do milagre. Vou ter coragem e enfrentar as sombras dos pensamentos.” Havia tanto arrependimento naquele coração de mãe... Levíssima alegria a considerar, a recompensa em encontrar Pedro. Tudo isso por uma brincadeira onde ninguém prestava atenção nas crianças, porque os moradores estavam sempre distraídos em suas embriaguez e perturbações. Parecia que o deserto se fizera presente antes de tudo acontecer. O deserto à espera de uma luz. Tudo por um sinal apenas. O que tranquilizava Kushim era pensar que tudo que existia tinha a graça do Criador e, para ela, o que fosse de Sua vontade prevaleceria. Era mulher religiosa. Gostava dos cânticos da igreja. Chegando próximo à meia noite, Pedro surgiu sorrindo e tudo se fez clarear. Toda a exaltação da graça recebida transbordava. Todos ali, confusos, tentando adivinhar o que havia acontecido. Era um sábado e tinha um grande almoço a ser feito. Mas, cada morador não saia do lugar ao ver Pedro correndo e sorrindo com os dentes à mostra. Só dona Kushim chorava, parecia não acreditar. Seu coração tremia e toda avareza de mãe brava, de não permitir surpresas entre os filhos, foi se transformando. Não se impacientava com facilidade, sequer com os vizinhos barulhentos. Mas, a surpresa da chegada de Pedro, o propósito de mudança em sua vida, chegou tão forte como um trem que chega na estação vazia. Aquela criança, de olhos de jabuticaba, fora parar próximo ao ribeirão e lá também adormecera por horas, porque perdera-se dos irmãos e buscara um descanso para novamente se alegrar. Dona Kushim, esperava os filhos todos os dias e, naquele sábado, não fora diferente. Jorge, Pedro e Luiz já estavam em casa. Mas, não tiveram o grande almoço. E junto ao povo da periferia 
ela se pôs a dançar e ninguém ficou parado. Não havia mais inquietação e nem holocausto.
Aquilo tudo era apenas brincadeira de criança da periferia.


Crônica de Ângela Márcia de Souza, na páginas 56/57,
 da 20a. Antologia Ponto & Vírgula - Poemas, Contos e Crônicas.
Editora FUNPEC - Coordenação de Irene Coimbra. 





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