- O que está lendo, Peregrino?
- Provérbios de Salomão.
- Você gosta de provérbios?
- Muito. Ouça este: “Do homem são as preparações do coração, mas do
Senhor a resposta da boca.” Uma grande verdade, não acha?
- Sim. Às vezes nos preparamos tanto pra falar com alguém e quando chega
o momento de falar, não falamos nada do que preparamos.
- Veja este: “O Senhor reserva a verdadeira sabedoria para os retos:
escudo é para os que andam em sinceridade.” O que me diz?
- Que quero andar sempre em retidão e sinceridade, para ter a Verdadeira
Sabedoria e o Senhor como meu escudo.
- O que me diz deste? - “A resposta branda desvia o furor, mas a
palavra dura suscita a ira.”
- Pelo menos para mim, está mais que provado. Se alguém fala brandamente
comigo, posso estar furiosa que me acalmo logo. Mas se fala duramente, nem sei
em que posso me transformar.
- Escuta este: “Até o tolo quando se cala será reputado por sábio; e o
que cerrar os seus lábios por entendido.” Você já viu algum tolo se calar?
- Não. Acho que estou precisando colocar em prática esse provérbio.
Ultimamente tenho falado demais.
- E este aqui: “As riquezas granjeiam muitos amigos, mas ao pobre o
seu próprio amigo o deixa.” o que me diz dele?
- Digo que está correto. Já viu como as pessoas ricas são bajuladas? O
pobre fica sempre de lado. Mas, me diga, você só gosta de Provérbios?
- Não, gosto de Salmos também.
- Qual deles, por exemplo?
- O vinte e três. Gosto muito do versículo quatro: “Ainda que eu
andasse pelo vale da sombra da morte, não temeria mal algum, porque Tu estás
comigo; a Tua vara e o Teu cajado me consolam.”
- É, ele dá uma força muito grande pra gente.
- Veja o versículo dois do capítulo dezoito: “O Senhor é o meu
rochedo, e o meu lugar forte, e o meu libertador; o meu Deus, a minha
fortaleza, em quem confio; o meu escudo, a força da minha salvação, e o meu
alto refúgio.”
- O rei Davi foi um grande salmista, não foi?
- Sim, e são tantos os Salmos que nos passam mensagens de ânimo e fé, que
se fôssemos ficar aqui comentando não terminaríamos nunca.
- Você tem razão, Peregrino.
- Sabe, Alma, antes de começar a ler a Bíblia, eu estava pensando nos
mistérios da vida...
- Que mistérios?
- A própria palavra “mistério”, pra mim já é um mistério.
- É. Mas acho que não devemos ficar preocupados com
"mistérios".
- Como não? Tenho milhões de perguntas e não consigo encontrar as
respostas.
- Qual a sua religião?
- Não tenho religião. Elas me enfadam e os pastores me aborrecem.
- Mas, você estava lendo a Bíblia...
- E daí? Gosto de ler qualquer coisa que seja filosófica. E a Bíblia, pra
mim, é filosofia.
- Pensei que fosse um missionário.
- Sou apenas um peregrino sonhador. Como dizia o poeta Antero de Quental:
"Sonho que sou um cavaleiro andante,
Por desertos, por sóis, por noite escura,
Paladino do amor, busco anelante,
O Palácio encantado da Ventura!"
Mas, já desmaio, exausto e vacilante,
Quebrada a espada já, rota a armadura...
E eis que súbito o avisto, fulgurante
Na sua pompa e aérea formosura!
Com grandes golpes bato à porta e brado:
Eu sou o Vagabundo, o Deserdado...
Abri-vos, portas d’ouro, ante meus ais!
Abrem-se as portas d’ouro, com fragor...
Mas dentro encontro só, cheio de dor,
Silêncio e escuridão - nada mais!”
- Que bonito! Sei um também!
“Tu, que dormes, espírito sereno,
Posto à sombra dos cedros
seculares
Como um levita à sombra dos
altares,
Longe da luta e do fragor terreno,
Acorda! É tempo! O sol, já alto e pleno,
Afugentou as larvas tumulares...
Para fazer surgir do seio desses mares,
Um mundo novo espera só um aceno...
Escuta! é a grande voz das multidões!
São teus irmãos, que se erguem! são canções...
Mas
de guerra... e são vozes de rebate!
Ergue-te, pois, soldado do Futuro,
E dos raios de luz do sonho puro,
Sonhador, faze espada de combate!”
- Onde encontrou esse soneto, Alma?
- Na mesma fonte onde encontrou o seu.
- Por acaso, também anda à procura do “Palácio Encantado da Ventura?”
- Não. Já encontrei o meu.
- Já? Onde?
- Venha, vou mostrar-lhe.
- Não vá me dizer que é alguma igreja?
- Não, Peregrino, é mais que uma igreja. Vamos ouvir o Mestre.
- Que Mestre?
- Aquele que responderá suas perguntas.
- Lá vem você com seus enigmas, Alma.
- Não é nenhum enigma.
- Então o que é?
- O que você busca anelante.
- E o que busco?
- O que acabou de dizer, agora mesmo.
- Só recitei um soneto.
- Com o qual se identificou.
- Você leva tudo ao pé da letra.
- Estou tentando ajudá-lo, meu Santo Agostinho.
- O que quer dizer com “Santo Agostinho”?
- É me lembrei desse filósofo. Gostaria de ouvir um pedacinho de sua
história?
- Claro! Você é minha contadora de histórias predileta.
- Um filósofo chamado Agostinho, andava um dia pela praia, pensando nos
mistérios da vida. De repente parou e ficou observando um menininho que, com
uma conchinha, ia até ao mar, enchia-a de água, vinha e colocava aquela água
dentro de um buraquinho que havia na areia. Por muito tempo ficou observando
aquela cena. O menininho parecia incansável no seu trabalho. Aproximou-se dele
e perguntou:
- O que você está fazendo, menininho?
- Não está vendo? - respondeu o menininho - Vou colocar toda a água do
mar neste buraquinho.
- Mas não vê que isso é impossível? disse o filósofo.
- É mais fácil colocar toda a água do mar neste buraquinho, do que
colocar todos os mistérios de Deus na sua cabeça. - respondeu o menininho.
Daquele dia em diante o filósofo deixou de tantas indagações, pois
reconheceu naquele menininho o Mestre dos Mestres. Gostou?
- Sempre gosto de ouvir suas histórias. E qual a mensagem pra mim?
- Não deixe que os mistérios de Deus o enlouqueçam. Brevemente todos lhe
serão revelados. Agora vamos.
- Está bem, Alma, sei que não vai desistir. Aonde vamos?
- Ao Infinito.
Do Livro: "Denúncias Poéticas, Contos e Crônicas" - Pág. 17 - Irene Coimbra
Do Livro: "Denúncias Poéticas, Contos e Crônicas" - Pág. 17 - Irene Coimbra
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