A Mancha- Ely Vieitez Lisboa



Olhou para a face da filha. À vista da mancha escura que lhe cobria parte do rosto, teve um estremecimento. Apalpou a barriga e arrepiou-se de novo; teria sido um sonho? Não. A menina já estava com dois anos. Havia dois anos que acontecera aquilo. Precisava esquecer... Mas como? O estigma ali estava a relembrá-la sempre.
Casara-se nova, com rapaz pobre. Foram morar numa chácara pequena que o marido arrendara. Ela o ajudava, trabalhando com ele em quase toda espécie de serviço.
Foi numa tarde, quando abaixou para apanhar algo, que sentiu a primeira tonteira. Esperou que a vista desturvasse e enrugou a testa, imaginando o que seria. Depois sorriu. Estava grávida.
João ficou contente com a notícia: “Podia ser homem, mas se fosse mulher não seria mal”.
A vida não mudou nada; Maria trabalhava muito, lavava roupa, andava sempre descalça. Nunca gostou de sapatos. Só para festas. Era bom sentir a terra morna sob os pés ou o chão duro da cozinha. Raramente usava calças. “Besteira... Pra que, se a gente tem a saia pra se cobrir?”
Foi uma gravidez comum. Com enjoos e azia. Nos últimos meses chagava a se arrepender da tolice que fizera, deixando pegar filho. Agora estava ali com aquela barriga tão grande e incômoda, já não podia fazer muita coisa nem agachar quase. Dormia pouco, procurando posições melhores. João acordava às vezes, olhava-a com pena e ao mesmo tempo com orgulho: “Isto passa logo, mulher, no mês que vem você está de barriga vazia. Está mexendo muito hoje?”
Foi numa tarde quente e abafada que começou a sentir as primeiras dores fortes, terríveis. De vez em quando ficavam mais fracas, depois aumentavam; parecia que uma faca rasga-va-lhe as entranhas. Rosa, mulata gorda, de meia-idade, estava com ela, preparando panos e água quente. Mandou João para fora. “Se precisar eu chamo; homem só atrapalha”.
Às dez horas da noite as dores aumentaram. Suada, ofegante, contorcendo-se, ela sentiu que a hora chegara. Não aguentava mais! Não queria gritar. Mordeu furiosamente o lençol que cobria parte do seu corpo e fez um último esforço. Pareceu-lhe então que todas as suas entranhas lhe foram saindo pelas pernas... Um alívio imenso tomou-a; sentiu vontade de dormir. Abriu os olhos e viu Rosa segurando a criança pelos pés, dando palmadas leves nas nádegas pequenas e úmidas. Sorriu. Tudo acabado. “É fêmea”, disse Rosa.
Foi quando sentiu aquilo. Seria impressão?! Não, algo se mexeu ainda no seu ventre. Olhou aparvalhada para a barriga murcha. De novo a coisa movimentou-se!
─ Rosa!
A parteira colocou a mão sobre a barriga de Maria e arregalou os olhos, franzindo a testa. Tinha que ver o que era aquilo, fazer o “outro parto”.
Precisava não pensar mais no que acontecera. Teria sido um pesadelo? Olhou para fora. O milho começava amadurecer; algumas bonecas já tinham perdido o cabelo. Logo era colheita. Reparou na cara da filha. A mancha, a mancha! E viu de novo Rosa horrorizada, com aquilo que tirara de sua barriga! Um bicho preto, enorme, parecendo rato, esperneando na mão da parteira. Sem saber o que fazia, Rosa jogou o bicho no chão, atirando-lhe uma bacia em cima. Depois gritou por João. Maria olhava com olhos arregalados, sem entender nada. Aquilo, aquilo dentro dela?! Virou-se para o canto horrorizada e principiou a chorar.
Por dois meses não comentou mais o caso. Rosa prometera não falar e o marido esquivava-se do assunto. Soube mais tarde, por frases rápidas e de má vontade, que João matara “aquilo”, esmagando-o com o pé. E nada mais disse, num mutismo cheio de horror e de nojo. Ele tentava esquecer; ela lembrava sempre procurando entender o que havia acontecido. O bicho gerara na sua barriga, junto com sua filha. Como? Vinham-lhe náuseas e calafrios. Sim, a prova ali estava, aquela mancha escura, de um formato estranho, que lembrava o animal. Com certeza ela apanhara algum micróbio quando trabalhava agachada ou sentada no chão. Então o bicho era... Besteira, por que não deixava de pensar? Mas lá estava a mancha, escura, arredondada, feia, tomando parte da face da menina. 


12a. Antologia Ponto & Vírgula - Página 91





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