Dezembro negro- Aline de Oliveira Cláudio



            O sol, na capital inglesa, se despede por volta das 15:45. Faz frio, venta e chove. Uma das cidades mais ricas do mundo também sofre com milhares de moradores de rua.
            Para muitos, dezembro é o mês mais esperado do ano. Pode-se sentir o espírito natalino em quase todos os lugares. As ruas estão enfeitadas com luzes pisca-pisca, músicas natalinas são ouvidas em repetição, nas lojas e supermercados. Floristas expõem seus belos pinheiros de Natal para compra. Dezembro é um mês de amor, felicidade e... tristeza.
            Quarta-feira, 20h. O aplicativo no celular mostra a temperatura de 3 graus. Um casaco quente, um suéter de lã e uma malha quase não são o bastante para aquela temperatura. E ainda assim, dezembro não é o mês mais frio do ano.
            Quatro jovens se aproximam, agacham e começam a conversar com um morador de rua que aparenta mais de 70 anos, com aparência muito cansada, sujo e visivelmente embriagado. "Como tem passado, Lou?" - um dos rapazes pergunta. O homem, ainda deitado em sua cama de papelão, responde: "Nada mal e você?" e, rapidamente, já pergunta: “O que trouxeram hoje?” Uma das moças responde:  “Sopa de lentilha e pão com queijo, Lou!”
            O homem balbucia e, enquanto tosse, se levanta e aperta carinhosamente a mão da moça num gesto de agradecimento.
            Lou, que servira o exército, agora vive na rua, sozinho. Sem contato com a família que vive no norte da Inglaterra, diz que “se perdeu” quando voltou da Guerra Irã-Iraque, nos anos 1980, quando o Reino Unido lutou ao lado do Irã. Depois de meses no campo de batalha, e uma bala atravessada no braço, encontrou no álcool e na cocaína o alívio que precisava para seus dias. Não conseguia mais se encaixar em nenhum emprego.  Deprimido e sem o apoio da família, resolveu sair sem rumo. Mais de 20 anos depois,  tem naquele meio metro quadrado, há poucos metros da estação de Ealing Broadway, no oeste de Londres, sua casa.
            O sotaque carregado e a fala arrastada quase o fazem ininteligível.
            Aquela noite é a primeira noite que uma das moças sai com o grupo para entregar sopa e comida para os moradores em situação de rua. Ela não entende o porquê ninguém diz a Lou que ele precisa parar de beber. Nenhum dos três jovens presentes o repreende.  Oferecem água, chá preto com leite, sopa de lentilha, pão com queijo e duas tortinhas de frutas secas (tradicional durante o período de Natal). Após, mais ou menos 20 minutos de conversa, se despedem de Lou que agradece e diz: “Até sexta!”
            Um dos moços diz que há previsão de chuva fina em meia-hora. Apressam-se para o próximo destino. Durante aquela noite, os jovens visitam mais quatro moradores de rua que ainda não são conhecidos do grupo. Um romeno em seus 30 anos, um inglês de 55 anos - ou ele “imagina que seja”, um refugiado sírio de 33 anos e um nigeriano que diz “estar nessa terra há alguns anos”.
            Todos eles têm algum tipo de álcool entre seus pertences. Todos estão sozinhos e visivelmente cansados. Todos estão equipados com sorrisos e palavras de agradecimento.
            Após o último “rough sleeper” (como são chamadas as pessoas que vivem e dormem nas ruas), o grupo se despede e cada um volta para sua casa onde há uma cama quente e um aquecedor ligado.
            Depois de conhecer Lou e mais quatro pessoas naquela noite de quarta-feira de 3 graus, aprendi algo óbvio: o meu NÃO julgamento é uma das grandes coisas que posso oferecer  a esse mundo.
            Quando se está sozinho na rua, há tanto tempo, sem família, documentos, dinheiro, quando se perdeu tudo, a felicidade, a esperança, quando está frio e só tem um cobertor, uma garrafa de sopa de lentilha e uma tortinha, o que menos se precisa é de um grupo de jovens dizendo que não se pode beber.
            Não há como sentir o vento gelado e não pensar nessas milhares de pessoas. Não há mais como dizer que amo o frio.
            Dezembro é lindo, cheio de amor e felicidade. Dezembro não é frio e triste.

“Un hombre muere de frío, no de oscuridad.” - Miguel de Unamuno.





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