É possível amar quando se vive em uma ditadura?- Ricardo de Moura Faria




           No ambiente esfumaçado por conta de um velho cachimbo, o professor Afonso sentou-se na cadeira preferida e prestou atenção aos sons da Petite Suíte – en bateau, de Debussy, que inundaram o ambiente. Afonso ali permaneceu, silenciosamente. Aquele momento era um ritual, seguido há mais de dez anos. Em todo último dia de férias, à tardinha, ele fechava as cortinas de seu espaçoso escritório, iluminado tão-somente pela fraca luz de um abajur, ligava a vitrola e, sentado na velha cadeira de balanço – herança de seus pais, já falecidos – fechava os olhos e saboreava cada nota, dando longas baforadas em seu cachimbo. Seus pensamentos, invariavelmente, oscilavam entre as impressões que os sons lhe causavam e a apreensão pelo dia seguinte, quando uma nova turma estaria à sua espera. Ninguém o interrompia. O momento era só seu. A esposa Celina e os filhos, Nelson e Ana Beatriz, um casal de dez e oito anos respectivamente, sabiam daquela sua idiossincrasia e não o perturbavam. Naquele domingo, 28 de fevereiro de 1971, no entanto, a música, por alguma razão que não soube explicar, causou-lhe uma reação diferente. A primeira parte da suíte, que o impressionava pela capacidade de Debussy provocar a sensação de que o ouvinte estava de fato dentro de um barco, a navegar num lago calmo, essa primeira parte parecia ter sido concluída muito rápido e o 91 que vinha em seguida, sons mais tumultuados, tornou-se mais perceptível, causando um grande incômodo. Seria um sinal? Ele, historiador e bastante cético, não era chegado a acreditar nesse tipo de sinais. Sem ter uma explicação para o que estava sentindo, concluiu que talvez fosse ele que não estivesse se sentindo bem. Devia ser isso. Com certeza era isso. Repetiu para si mesmo uma dezena de vezes, como se quisesse acreditar em algo que não era crível. Desligou a vitrola, guardou carinhosamente o LP tantas vezes já manuseado e foi para a sala onde todos viam a televisão. Não conseguiu prestar atenção, sequer seria capaz de identificar o canal sintonizado. Às 22 horas, chamou todos para a cama. As crianças foram para seus quartos e ele e sua esposa também se recolheram. Custou a dormir e quando conseguiu, teve sonho tumultuado. Estava em um barco, havia mais alguém com ele, e por mais que tentasse enxergar, não conseguia vislumbrar o rosto da pessoa. Aquela imagem não lhe era estranha. Sim... parecia uma tela do sé- culo XIX, A dama de Shallot, do pintor inglês John William Waterhouse, pintura cheia de simbolismos relacionados à morte. A Petite Suite estava sendo executada, só que ele não via a orquestra. Súbito, o bote começou a girar como se capturado fosse por um redemoinho, as águas perderam o tom azul esverdeado, adquiriram uma tonalidade vermelha que, perplexo, identificou como sangue. Procurou a pessoa que estava no barco com ele e não a viu. Acordou suado, arfando. Olhou para o lado e viu a esposa dormindo placidamente. Tentou reatar o sono; quando conseguiu, o sonho não retornou. 92 De manhã, ao acordar, vestindo-se para ir começar o novo curso, lembrou-se do sonho e tentou encontrar uma explicação para ele. Porém, não era versado no assunto. Desistiu. O sonho que Afonso teve aquela noite foi uma autêntica premonição de que o ano de 1971 seria atípico e que a vida deles deixaria de ser tão pacata quanto fora até aquele momento.

Trecho inicial do romance 
O amor nos tempos do AI-5
publicado pela Editora Novo Século


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