Os professores repreendiam-me, estranhavam...- Perce Polegato

    Os professores repreendiam-me, estranhavam que tanto eu pressionasse o lápis sobre o papel. Mais tarde, a caneta. Nunca soube escrever de outra maneira, e não me desenvolvi. O adolescente não podia evitar que os tipos datilografados perfurassem o papel – e os acentos, aspas, vírgulas e interrogações remetiam ao braile, não sem alguma alusão oportuna, minhas dúvidas e escuridão. Não me ocorre, mesmo hoje, a razão pela qual necessito firmar minha escrita, meu código de forças, minha ativa mão, meus dínamos em meio a um mundo insólito e perpassado pela indiferença. O texto é meu objeto, meu homem de argila. E nenhum papel foi jamais suficiente para mim.
    O registro, resto de uma verdade que me atraísse, não era senão a sobra, a perda. No último degrau do pátio, caderno sobre os joelhos, sozinho ante o muro em cuja base os brotos de hera buscam firmar-se, o menino intui que as palavras se transformam, que se modificam conforme os olhos de quem as considera, que não podem ser transcritas. Que viajam. E se deslocam entre os dias e os gestos, e se dissolvem para germinar, desaparecem como os antigos idiomas e os povos reciclados pela terra. Não existe o ponto-final, nós o inventamos. Para que a frase se detenha. E o texto não se confunda com o universo ou com a sombra.
    Quando eu despertava, pensava em meu nome como reafirmando que ainda era o mesmo após uma noite inteira de sono. Admirava-me que as palavras estivessem presas às coisas e não caíssem como o ramo seco de uma árvore ou a casca de um ferimento em vias de cicatrização. Que um vento forte não as embaralhasse e essa árvore não passasse a se chamar poste ou cavalo. Um cão, menino. Uma casa, ratoeira. Um homem, pedra.
    Caderno sobre os joelhos, caneta acrescentando relevos ao papel ordinário. Sinal do intervalo. Antes que o menino se levante e se misture à correria das crianças rumo às salas de aula, onde os professores certamente haverão de estranhar que assim ele pressione a caneta sobre sua única chance.


Da coletânea “Lisette Maris em seu endereço de inverno”

Em Destaque na 50a. Revista Ponto & Vírgula
Bimestre março/abril/2020


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