O MUNDO OCULTO - Sérgio Roxo da Fonseca

                      Da Academia Ribeirãopretana de Letras

 A “Dama Oculta” é o título do penúltimo filme que Hitchcock dirigiu ainda na Inglaterra, o que ocorreu em 1938. Logo após transferiu-se para os Estados Unidos onde construiu uma brilhante carreira. 

 Afirma-se que este filme é considerado a única comédia deste diretor. Com outra visão, elegi a película como marcadamente filosófica.  Minha opinião não é técnica porque consabidamente não sou filósofo e muito menos psicólogo. Mas vamos em frente.

 No filme, uma moça conhece uma senhora enquanto as duas viajam num trem. Convivem pouco tempo porque a senhora logo desaparece. A jovem sai à procura dela. Não a encontrando, passa a pedir ajuda a várias pessoas que a viram juntas. Todas elas negam ter visto a jovem com a dama. Elas estão mentindo porque tiveram oportunidade de ver a jovem com a dama. Todas mentem, mas cada uma tem um motivo diferente para faltar com a verdade. 

 Importante para Hitchcock é destacar que cada mentiroso tem uma razão diferente para mentir. A jovem se desespera porque tem firme certeza que foi vista por todos ao lado da dama oculta. Nas cenas finais, as perguntas encontram resposta.

 O filme profetiza a existência de inúmeros episódios da nossa existência nos quais testemunhamos discussões intermináveis por debatedores que ocultam a razão da sua própria verdade, mesmo quando mentem. Se é que todos possam crer que somente eles são dotados da lente para enxergar contraditoriamente, a verdade converte-se em uma grande mentira. Não há verdades que se contradizem. Mas, a toda a hora presenciamos o fenômeno, lembrando a lição extraída do filme. Imperdível, de verdade. 

 A moça insiste com todos que estão dentro do trem: “Você me viu ao lado da senhora”. Todos estão mentindo quando afirmam: “Nós vimos a senhora dentro do trem, mas sozinha”. Todos mentem, mas cada um tem uma razão diferente para mentir.

 O extraordinário escritor Érico Veríssimo deixou uma frase que profetiza tão grande encrenca: “todos nós somos um mistério para os outros... e para nós mesmos”. A pandemia do covid demonstrou com firmeza que todos acreditam conhecer a chave para abrir esse enorme mistério. Poucos serão aqueles que conseguem dar concretude para os seus conhecimentos encaminhando-os para a plenitude da verdade. Muitas vezes só o tempo será a razão da verdade. Mesmo com a cobrança de preços imensos, como com a exigência de infindável mortandade. 

 Érico Veríssimo durante algumas vezes deu aulas em universidades americanas, chegando mesmo a prestar serviços para a OEA. Afirmou que numa solenidade, um norte-americano, conversando com ele, perguntou se o Brasil era maior ou menor do que o Estado do Texas. O nosso diplomata respondeu que o Brasil era maior do que os Estados Unidos. Mas, claro, isto por volta da metade do século XX,

 Atualmente aquela verdade se desmoronou. Os Estados Unidos cresceram desmedidamente. O tempo mudou a certeza de Érico Veríssimo. Hoje os Estados Unidos tornaram-se donos do Canal do Panamá, de Porto Rico, do Havaí, do Biquini, invadiram o Afeganistão, o Iraque e durante um largo tempo ocuparam o Vietnã. Não nos esquecemos do que significa a antiga regra: “a América é dos americanos”. Os Estados Unidos tornaram-se muito maior do que o grande Brasil, tendo em conta os seus territórios. O tempo mudou a regra de Veríssimo.

 Alberto Morávia trilhou caminho semelhante aos trilhos de Hitchcock quando afirmou que “em certos momentos de extrema indecisão, a razão, que normalmente não passa de um meio, pode tornar-se um fim”. Como todos lidam com a razão de ser, talvez seja possível proclamar que sempre somos verdadeiros, ainda quando invadamos as veredas da mentira. Até sem saber.



Crônica de Dr. Sérgio Roxo da Fonseca, em destaque, na página 17 da 56a. Revista Ponto & Vírgula (julho/agosto/setembro/2021) 

Editora: Irene Coimbra



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