Secreto luxo- Fernanda R. Mesquita



 Que todos os dias são cheios de labutas domésticas, quase todos o sabem;
as crianças crescem a olhos vistos. Quase todos, sim, porque alguns só sabem
ver que as crianças crescem a olhos vistos. Arruma o último talher,
coloca o ´´naperon` na mesa``e ajeita as maçãs na fruteira de inox.
As crianças, depois de tanta brincadeira e de uma história contada,
abrandam a energia infantil no sono que promete tranquilidade.

Mais uma vez, vencera a luta na cozinha. Olha em volta; tudo em ordem,
tudo preparado. Poderia cair na cama, que ela mesma arrumara,
antes do dia ter clareado, mas não.
Permite-se a um secreto luxo; viajar  até à varanda.
Senta-se na beira do muro, e faz o que ninguém sabe que ela sabe fazer: sonhar.
Parece que no catecismo das mulheres domésticas, não existe o sonho.
Antes de se entregar completamente ao culto, ajeita os fios de cabelo,
soltos do fatigado carrapito.

Silhueta  pequena no enorme silêncio universal, entrega-se ao doce fluxo
e encontra o escudo que a protege das lâminas  que lhe almejam, não a carne,
mas a alma.
Admira as estrelas e a lua. Elas não temem as alturas e não têm medo de sair à noite.
De mansinho, inventa-se hera, sobe até ao universo que nunca se gasta,
senta-se na lua, mostra-lhe o lado que nunca mostra a ninguém.
O decote respirando calmo e a testa expulsando as rugas;
sente-se pedra preciosa que fugiu ao lapidário.
Vem visita-la um anjo poeta que traz na sua mão uma gota do oceano.
Ela, envolta em sonhos de lã branca, refresca-se para fazer jus ao verbo viver.







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