No ambiente esfumaçado por conta de um velho
cachimbo, o professor Afonso sentou-se na cadeira preferida
e prestou atenção aos sons da Petite Suíte – en
bateau, de Debussy, que inundaram o ambiente. Afonso
ali permaneceu, silenciosamente. Aquele momento era
um ritual, seguido há mais de dez anos. Em todo último
dia de férias, à tardinha, ele fechava as cortinas de seu espaçoso
escritório, iluminado tão-somente pela fraca luz
de um abajur, ligava a vitrola e, sentado na velha cadeira
de balanço – herança de seus pais, já falecidos – fechava
os olhos e saboreava cada nota, dando longas baforadas
em seu cachimbo.
Seus pensamentos, invariavelmente, oscilavam entre
as impressões que os sons lhe causavam e a apreensão
pelo dia seguinte, quando uma nova turma estaria à sua
espera. Ninguém o interrompia. O momento era só seu.
A esposa Celina e os filhos, Nelson e Ana Beatriz, um
casal de dez e oito anos respectivamente, sabiam daquela
sua idiossincrasia e não o perturbavam.
Naquele domingo, 28 de fevereiro de 1971, no entanto,
a música, por alguma razão que não soube explicar,
causou-lhe uma reação diferente. A primeira parte
da suíte, que o impressionava pela capacidade de Debussy
provocar a sensação de que o ouvinte estava de fato
dentro de um barco, a navegar num lago calmo, essa primeira
parte parecia ter sido concluída muito rápido e o
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que vinha em seguida, sons mais tumultuados, tornou-se
mais perceptível, causando um grande incômodo.
Seria um sinal? Ele, historiador e bastante cético,
não era chegado a acreditar nesse tipo de sinais. Sem ter
uma explicação para o que estava sentindo, concluiu que
talvez fosse ele que não estivesse se sentindo bem. Devia
ser isso. Com certeza era isso. Repetiu para si mesmo
uma dezena de vezes, como se quisesse acreditar em algo
que não era crível.
Desligou a vitrola, guardou carinhosamente o LP
tantas vezes já manuseado e foi para a sala onde todos
viam a televisão. Não conseguiu prestar atenção, sequer
seria capaz de identificar o canal sintonizado. Às 22 horas,
chamou todos para a cama. As crianças foram para
seus quartos e ele e sua esposa também se recolheram.
Custou a dormir e quando conseguiu, teve sonho
tumultuado. Estava em um barco, havia mais alguém
com ele, e por mais que tentasse enxergar, não conseguia
vislumbrar o rosto da pessoa. Aquela imagem
não lhe era estranha. Sim... parecia uma tela do sé-
culo XIX, A dama de Shallot, do pintor inglês John
William Waterhouse, pintura cheia de simbolismos
relacionados à morte. A Petite Suite estava sendo executada,
só que ele não via a orquestra. Súbito, o bote
começou a girar como se capturado fosse por um redemoinho,
as águas perderam o tom azul esverdeado,
adquiriram uma tonalidade vermelha que, perplexo,
identificou como sangue. Procurou a pessoa que estava
no barco com ele e não a viu.
Acordou suado, arfando. Olhou para o lado e viu
a esposa dormindo placidamente. Tentou reatar o sono;
quando conseguiu, o sonho não retornou.
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De manhã, ao acordar, vestindo-se para ir começar
o novo curso, lembrou-se do sonho e tentou encontrar
uma explicação para ele. Porém, não era versado no assunto.
Desistiu.
O sonho que Afonso teve aquela noite foi uma autêntica
premonição de que o ano de 1971 seria atípico
e que a vida deles deixaria de ser tão pacata quanto fora
até aquele momento.
Trecho inicial do romance
“O amor nos tempos do AI-5”
publicado pela Editora Novo Século
Trecho inicial do romance
“O amor nos tempos do AI-5”
publicado pela Editora Novo Século
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