Mais, não podíamos pagar. E bem poderia valer um aluguel menos razoável: modesta mas aconchegante, convidativa, cômodos pequenos, última da vila. Cabendo justamente às nossas necessidades, nossa mobília.
Vizinhos simpatizaram logo conosco. Talvez faltasse à vila um casal de pouco tempo, sem filhos. Eles próprios nos cobravam novos moradores, oferecendo-se tios, padrinhos, avós. O primeiro sinal de boas-vindas, trouxe-nos uma senhora da casa em frente: um vaso de barro, planta delicada de folhas retraídas, um verde muito claro e vivo como só se observa nas manhãs de bom tempo e estando os olhos de janelas abertas. Pediu que a molhássemos diariamente, detalhou pequenos cuidados, previu seu desenvolvimento de acordo com a adaptação ao nosso mundo – sua umidade, sua luz e sua sombra.
De outra casa, saía o morador mais velho, aposentado de olhos miúdos, simpático e feito a dar-se com todos. Cadeira na calçada, acompanhava o futebol improvisado das crianças. Perguntei-lhe sobre a placa à entrada da vila, sobrenome em logotipo, número de cinco casas.
“Foi ele quem reformou a rede de esgoto aqui do quarteirão. Tenho fé que vai ser reeleito. Esse sim! Homem íntegro, trabalhador, amigo do povo!”
Disse-me também, pela terceira vez, que o pessoal da vila nunca se desentendera, que eram todos uma só família.
Nossa prestativa vizinha da frente vinha ver-nos todos os dias. Acrescentava curiosidades sobre a plantinha, que se desenvolvia rapidamente, elogiava os bons tratos. A casa dela era escurecida de plantas. Prometeu-nos fertilizante especial, inseticida forte, terra tratada. No sábado, pegou-me em casa. Logo que se retirou, minha companheira puxou-me a um canto.
“Cuidado com o que diz quando ela pergunta sobre nós. Todos aqui pensam que somos casados.”
Contou-me ainda que, no dia anterior, essa mesma vizinha vira-se com um cisco no olho, então invocara talvez São Geraldo e com certeza Nossa Senhora da Paz, pelo que se lembrava, sendo que, após a expulsão do corpo estranho, dissera-lhe, sensibilizada e gratificada, que esses seus protetores nunca a deixavam sozinha.
Deu-se na semana seguinte a oportunidade de conversar com a estudante dos discos. Filha de moradores antigos, nascera ali dezessete anos atrás e era quem dirigia as sessões de música que de sua casa alcançavam, com diferente intensidade de volume, todas as reentrâncias da simétrica vila. Confessei-lhe minha forte atração por música e minhas preferências.
“Não tenho nenhuma preferência”, ela sorriu. “Gosto de tudo, escuto tudo. Às vezes até aumento o volume do rádio. Adoro música!”
Brinquei dizendo que não havia nada neste mundo que me fizesse aumentar o volume de um rádio, mas ela disse que ela sim, que adorava música.
O aposentado deteve-me com um aceno, chamou-me a ver um pouco do futebol de rua. Eu lhe disse que tinha pressa, ia ao trabalho. Mas ele comentou a agilidade dos meninos, os corpinhos rijos, queimados de sol diário.
“Todos com saúde, graças a Deus.”
Também nos visitou a família mais religiosa. Um homem educado, sereno e em paz consigo mesmo, apesar de sua esposa esquelética, irritadiça e precocemente envelhecida. Aos filhos uniformizados com o mesmo corte de cabelo, tive o prazer de conquistar mostrando-lhes um fascículo com telas de Toulouse-Lautrec. O caçula pediu-nos moedas. Trouxeram-nos uma cópia do Evangelho e um cristo de alumínio. A mulher pediu que o pregássemos o quanto antes. Desde que chegaram à vila, assim presentearam cada vizinho, levando a todos sua mensagem de amor, fé e esperança. Despediram-se, ficássemos com Deus.
“Vão com Deus”, dissemos.
Até o vizinho dos mais calados, ar sisudo e bigode negro, mostrava-se indivíduo de boa índole, como ele próprio admitiu, honesto e muito trabalhador. Da última vez que nos encontramos, elogiou minha força de vontade, fazendo-me ver o valor da dedicação ao trabalho, o papel da honestidade na vida breve de um homem.
Nesse dia, voltei mais tarde. Já havia escurecido. Soprava uma brisa de certa forma ameaçadora, como se prenunciasse ventos mais intratáveis. Sorriu-me o aposentado, de sua varanda, assistia às últimas brincadeiras das crianças.
“É a vila mais alegre do país”, garantiu-me. “Só gente boa, gente honesta.”
Subi o degrau do portão. Nem me dera conta de como a planta havia crescido: enredava-se no suporte, escurecia nossa pequena varanda, ramos buscando a porta da sala. As folhas largas, de nervuras rígidas, assumiam tons de violeta e vinho, do que a dedicada vizinha não nos prevenira. Notei também uma trilha de formigas que até então não se havia mostrado nessa parede, à altura de minha cabeça. Considerei, como tantas vezes fizera, que as formigas, por mais que se sacrifiquem em seu afã interminável, veem sempre menos dimensões do que supomos, com isso nunca suspeitando de que podemos, a qualquer momento e à nossa maneira, esmagá-las, desde que não mais nos interesse observar seu trabalho.
Mesmo depois de jantarmos, minha companheira se retraía, nervosa. Cada cigarro alimentava sua ansiedade. Nossa conversa estendeu-se até noite alta. Há muito, não mais se ouvia o som das crianças, seus gritos de alegria ou de raiva, seus gemidos de dor. Nem o zumbido simultâneo das TVs, os chamados, os talheres, o rumor de música da casa da estudante. Só o vento prosseguia em sua fuga.
Fiz outro café, que tomamos na cozinha. Perdemos a longitude das horas. Adivinhávamos, de um para o outro, que não conseguiríamos dormir. Também não nos chegava a convicção de que nossos vizinhos estariam, àquela hora, imersos em sonhos tranquilos – de minha parte, isso sempre abria margem a algum furtivo pesadelo. Lá fora, os ramos batiam à porta, ajudados por um desvio do vento.
Minha namorada fixava olhos distantes. Parecia estar com frio. Mas não fazia frio. Fiquei olhando a respiração de seus seios sob a camisola curta. Mãos trêmulas, pernas e pés esgotando possibilidades, posições. Por fim ergueu-se, mãos na cabeça, dedos violentando os cabelos.
“Não posso mais.”
Parei à sua frente, segurando-a pelos ombros.
“Você vê, tanto quanto eu, eu sei. Temos que sair daqui o mais rápido possível, enquanto ainda... Enquanto nós podemos... Antes que nós...”
Propus que deixássemos o que mais fosse, fizéssemos as malas do que ainda nos parecesse essencial ou mágico, partíssemos antes do amanhecer, aproveitando a cidade de lua, o vento incomunicável, o sono coletivo dos justos. Ela me abraçou esboçando um pranto emocionado, que felizmente dominou a tempo. Senti seu corpo mais quente, costas e nádegas relaxadas, como voltando a si. E a mim. Sorria, outra vez plena. Outra vez encantada, outra vez menina.
Vizinhos simpatizaram logo conosco. Talvez faltasse à vila um casal de pouco tempo, sem filhos. Eles próprios nos cobravam novos moradores, oferecendo-se tios, padrinhos, avós. O primeiro sinal de boas-vindas, trouxe-nos uma senhora da casa em frente: um vaso de barro, planta delicada de folhas retraídas, um verde muito claro e vivo como só se observa nas manhãs de bom tempo e estando os olhos de janelas abertas. Pediu que a molhássemos diariamente, detalhou pequenos cuidados, previu seu desenvolvimento de acordo com a adaptação ao nosso mundo – sua umidade, sua luz e sua sombra.
De outra casa, saía o morador mais velho, aposentado de olhos miúdos, simpático e feito a dar-se com todos. Cadeira na calçada, acompanhava o futebol improvisado das crianças. Perguntei-lhe sobre a placa à entrada da vila, sobrenome em logotipo, número de cinco casas.
“Foi ele quem reformou a rede de esgoto aqui do quarteirão. Tenho fé que vai ser reeleito. Esse sim! Homem íntegro, trabalhador, amigo do povo!”
Disse-me também, pela terceira vez, que o pessoal da vila nunca se desentendera, que eram todos uma só família.
Nossa prestativa vizinha da frente vinha ver-nos todos os dias. Acrescentava curiosidades sobre a plantinha, que se desenvolvia rapidamente, elogiava os bons tratos. A casa dela era escurecida de plantas. Prometeu-nos fertilizante especial, inseticida forte, terra tratada. No sábado, pegou-me em casa. Logo que se retirou, minha companheira puxou-me a um canto.
“Cuidado com o que diz quando ela pergunta sobre nós. Todos aqui pensam que somos casados.”
Contou-me ainda que, no dia anterior, essa mesma vizinha vira-se com um cisco no olho, então invocara talvez São Geraldo e com certeza Nossa Senhora da Paz, pelo que se lembrava, sendo que, após a expulsão do corpo estranho, dissera-lhe, sensibilizada e gratificada, que esses seus protetores nunca a deixavam sozinha.
Deu-se na semana seguinte a oportunidade de conversar com a estudante dos discos. Filha de moradores antigos, nascera ali dezessete anos atrás e era quem dirigia as sessões de música que de sua casa alcançavam, com diferente intensidade de volume, todas as reentrâncias da simétrica vila. Confessei-lhe minha forte atração por música e minhas preferências.
“Não tenho nenhuma preferência”, ela sorriu. “Gosto de tudo, escuto tudo. Às vezes até aumento o volume do rádio. Adoro música!”
Brinquei dizendo que não havia nada neste mundo que me fizesse aumentar o volume de um rádio, mas ela disse que ela sim, que adorava música.
O aposentado deteve-me com um aceno, chamou-me a ver um pouco do futebol de rua. Eu lhe disse que tinha pressa, ia ao trabalho. Mas ele comentou a agilidade dos meninos, os corpinhos rijos, queimados de sol diário.
“Todos com saúde, graças a Deus.”
Também nos visitou a família mais religiosa. Um homem educado, sereno e em paz consigo mesmo, apesar de sua esposa esquelética, irritadiça e precocemente envelhecida. Aos filhos uniformizados com o mesmo corte de cabelo, tive o prazer de conquistar mostrando-lhes um fascículo com telas de Toulouse-Lautrec. O caçula pediu-nos moedas. Trouxeram-nos uma cópia do Evangelho e um cristo de alumínio. A mulher pediu que o pregássemos o quanto antes. Desde que chegaram à vila, assim presentearam cada vizinho, levando a todos sua mensagem de amor, fé e esperança. Despediram-se, ficássemos com Deus.
“Vão com Deus”, dissemos.
Até o vizinho dos mais calados, ar sisudo e bigode negro, mostrava-se indivíduo de boa índole, como ele próprio admitiu, honesto e muito trabalhador. Da última vez que nos encontramos, elogiou minha força de vontade, fazendo-me ver o valor da dedicação ao trabalho, o papel da honestidade na vida breve de um homem.
Nesse dia, voltei mais tarde. Já havia escurecido. Soprava uma brisa de certa forma ameaçadora, como se prenunciasse ventos mais intratáveis. Sorriu-me o aposentado, de sua varanda, assistia às últimas brincadeiras das crianças.
“É a vila mais alegre do país”, garantiu-me. “Só gente boa, gente honesta.”
Subi o degrau do portão. Nem me dera conta de como a planta havia crescido: enredava-se no suporte, escurecia nossa pequena varanda, ramos buscando a porta da sala. As folhas largas, de nervuras rígidas, assumiam tons de violeta e vinho, do que a dedicada vizinha não nos prevenira. Notei também uma trilha de formigas que até então não se havia mostrado nessa parede, à altura de minha cabeça. Considerei, como tantas vezes fizera, que as formigas, por mais que se sacrifiquem em seu afã interminável, veem sempre menos dimensões do que supomos, com isso nunca suspeitando de que podemos, a qualquer momento e à nossa maneira, esmagá-las, desde que não mais nos interesse observar seu trabalho.
Mesmo depois de jantarmos, minha companheira se retraía, nervosa. Cada cigarro alimentava sua ansiedade. Nossa conversa estendeu-se até noite alta. Há muito, não mais se ouvia o som das crianças, seus gritos de alegria ou de raiva, seus gemidos de dor. Nem o zumbido simultâneo das TVs, os chamados, os talheres, o rumor de música da casa da estudante. Só o vento prosseguia em sua fuga.
Fiz outro café, que tomamos na cozinha. Perdemos a longitude das horas. Adivinhávamos, de um para o outro, que não conseguiríamos dormir. Também não nos chegava a convicção de que nossos vizinhos estariam, àquela hora, imersos em sonhos tranquilos – de minha parte, isso sempre abria margem a algum furtivo pesadelo. Lá fora, os ramos batiam à porta, ajudados por um desvio do vento.
Minha namorada fixava olhos distantes. Parecia estar com frio. Mas não fazia frio. Fiquei olhando a respiração de seus seios sob a camisola curta. Mãos trêmulas, pernas e pés esgotando possibilidades, posições. Por fim ergueu-se, mãos na cabeça, dedos violentando os cabelos.
“Não posso mais.”
Parei à sua frente, segurando-a pelos ombros.
“Você vê, tanto quanto eu, eu sei. Temos que sair daqui o mais rápido possível, enquanto ainda... Enquanto nós podemos... Antes que nós...”
Propus que deixássemos o que mais fosse, fizéssemos as malas do que ainda nos parecesse essencial ou mágico, partíssemos antes do amanhecer, aproveitando a cidade de lua, o vento incomunicável, o sono coletivo dos justos. Ela me abraçou esboçando um pranto emocionado, que felizmente dominou a tempo. Senti seu corpo mais quente, costas e nádegas relaxadas, como voltando a si. E a mim. Sorria, outra vez plena. Outra vez encantada, outra vez menina.
Da coletânea Lisette Maris em seu endereço de inverno.
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